sábado, 21 de novembro de 2009

Ironia


Ele atravessou a rua rapidamente, não tinha tempo para asneiras. Não dava atenção para o mendigo que lhe implorava a comida. Mal tinha tempo para ser gente!

Andava pela calçada sem prestar atenção nas pessoas que por ele passavam; sem perceber seus olhares tristes e melancólicos. Não tinha tempo! Estava atrasado, e tempo e dinheiro, não podia perdê-lo

O trabalho fora fatigante. Brigara com a faxineira por não ter limpado o escritório direito. Brigara com a secretaria por que ela chegara 20 minutos atrasada, pois seu filho estava doente e ela passara a madrugada inteira no hospital. Mas ele não queria saber dessas besteiras. Não tinha tempo! Estava cheio de trabalho. Tempo é dinheiro, não podia perdê-lo.

O condomínio aumentou a taxa de novo, era a terceira vez esse ano. O sindico precisava de mais salário. Ele ficou furioso: como ele poderia ganhar o dinheiro dos outros se os outros também queriam ganhar o dinheiro dele? Brigou com o porteiro, acusando de fofocar no prédio. Não se importava que fosse injustiça. Não tinha tempo! Estava cansado mas não podia parar. Tempo é dinheiro, não podia perdê-lo.

A esposa estava furiosa, pois ele não fora buscar o filho na escola. Brigaram porque não sabiam de quem era a vez. Brigaram por terem que sair de casa para buscar o filho quando acabaram de chegar. Não se importava que o menino tivesse esperado 2 horas. Não tinha tempo! O filho lhes era um subordinado, ele que entendesse a situação de bico calado. Não podia perder tempo com ele. Tempo é dinheiro, não podia perdê-lo.

O menino tinha tirado nota baixa, pois tinha dificuldade de entender o professor. Ele brigou com o filho. Onde já se viu? Investira tanto dinheiro na educação dele, uma fortuna, muito mais valioso que os afagos que ele dizia sentir falta, e é assim que ele lhe agradece? O menino apanhou como nunca apanhara naquele dia, a cinta rasgava suas costas. Mas o pai não se importava com os gritos do menino. Ele lhe fizera perder dinheiro. Não podia perdê-lo.

Foi dormir furioso, pensando nos problemas que tinha no trabalho. Queria contá-los a família, mas... Não tinha tempo!

No dia seguinte ele acordou e saiu sem falar com ninguém. Não tinha tempo! E pegou um transito que lhe atrasou 2 horas a chegada no trabalho. Brigou com a secretaria por que ela provavelmente deveria ter chegado atrasada de novo, apesar de ele chegar depois dela.

Um colega o esperava: “meu amigo você é um exemplo de pessoa. Tem uma boa família, um bom emprego, é trabalhador. O que mais poderia querer?”

- “pois é, eu valorizo muito a minha vida e minha família. Não sou que nem essas pessoas que só ligam para o dinheiro. Não como esses ladrõezinhos do subúrbio que ficam de olho na nossa carteira, sempre querendo passar a perna. Agora me de licença que tenho que trabalhar. Tempo é dinheiro!”

Chegou o fim do expediente e ele saiu orgulhoso de ter fechado mais um grande negocio. Queria voltar logo para casa, contar a família o quanto seu trabalho e seu tempo bem aproveitado valera a pena. Ele andava pela rua tão confiante, ignorando todos ao seu redor, que não percebia que todos também o ignoravam. Atravessou a rua; não viu o carro...Bateu!

As pessoas passavam pela rua e o viam estirado no chão. Mas não paravam para olhar, nem para ajudar. Não tinham tempo! O que era mais um homem no meio da multidão? Tempo é dinheiro, não podiam perdê-lo.

2 comentários:

  1. Você escreve com a alma.
    Obrigado ó Grande Fest!

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  2. "Ele andava pela rua tão confiante, ignorando todos ao seu redor, que não percebia que todos também o ignoravam." - Muito boa essa parte!
    Adorei o texto Fest :)
    Realmente... tudo pelo dinheiro :T

    Beeijos
    Karina

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